O Velho e o Chaparro Abençoado
Porque este é um blog acerca de educação e ruralidades e de tudo o que as envolve, e por que, hoje, já muitos sonham em voltar para a vida no campo, partilho convosco um conto, que publiquei no meu outro blog, que fala do trabalho no campo, de animais, da vida, de responsabilidade e aprendizagem e da dignidade da morte.
Alentejo - Inês' Gallery |
O Velho saiu de casa, encurvado e trôpego, caminhando em passos curtos e rígidos.
Olhou em volta, deixando que a sua alma se enchesse dos cheiros e das cores, daquele mundo que conhecia de olhos fechados.
Os seus olhos, permanentemente lacrimejantes, fixaram, com amor, o velho sobreiro.
Determinado, caminhou até ele. Este não era um sobreiro qualquer. Era um sobreiro, ou melhor, um chaparro com história.
Contava-se
que o seu bisavô o tinha plantado no dia em que lhe nascera o primeiro
filho e que sempre o tratara com desvelado carinho e permanente atenção,
como se o chaparro fosse gente ou animal de estimação.
Quando
lhe perguntavam o que tinha o chaparro, para que lhe desse tanta
atenção, invariavelmente, respondia que o chaparro era abençoado e que,
um dia, seria a sua salvação.
O
sobreiro, não se fazendo rogado, crescia, crescia, engrossava o tronco e
estendia, fortes e elegantes, as suas enormes pernadas em direção ao
céu. E, um dia, foi mesmo a sua salvação.
Era
verão, um verão quente como não havia memória, o mundo estava quedo, a
terra e as searas torravam ao sol, os insetos emudeciam, o gado estava
prostrado, quando, inesperadamente, no céu ribombou um enorme trovão.
Atingido mortalmente, o centenário carvalho, que fazia sombra à casa, entrou em combustão, o fogo alastrou pelos campos, engolindo tudo à sua passagem. Não havia fuga possível. Então, o avô, arrastando o seu velho pai, correu até ao sobreiro, levando a família na frente. Um a um, todos subiram para as pernadas do imenso sobreiro e este, lambido pelas chamas em fúria, protegeu generosamente toda a família.
Atingido mortalmente, o centenário carvalho, que fazia sombra à casa, entrou em combustão, o fogo alastrou pelos campos, engolindo tudo à sua passagem. Não havia fuga possível. Então, o avô, arrastando o seu velho pai, correu até ao sobreiro, levando a família na frente. Um a um, todos subiram para as pernadas do imenso sobreiro e este, lambido pelas chamas em fúria, protegeu generosamente toda a família.
Naquela região, todos conheciam e respeitavam, agora, o Chaparro Abençoado.
O
Velho nunca conhecera o bisavô e mal se lembrava do avô, mas, desde
menino, aprendera a venerar aquela árvore, agora centenária, que
orgulhosamente dominava a paisagem.
Era
à sombra deste sobreiro que dormitava nas tardes de verão. Foi numa das
suas pernadas que pendurou o baloiço para os filhos. Era sob a sua
proteção que pensava e cismava, quando enfrentava problemas difíceis.
Era de lá que vigiava o gado na pastagem.
Rebanho de Ovelhas |
Toda a vida do Velho fora dedicada à lavoura e à criação de
animais. Ovelhas, vacas alentejanas, porcos pretos alentejanos e até as
vacas turinas, que lhe garantiam o leite durante todo o ano.
Porco preto Alentejano |
Eles eram o seu sustento, o seu trabalho e toda a sua devoção.
Vaca e bezerro Alentejanos |
Touro Alentejano |
Sentado no chão, encostado ao chaparro, o Velho,
com as suas mãos trémulas, cortava pedaços de queijo com o canivete que
retirara do bolso. Mastigava lentamente, saboreando cada pedaço que ia acompanhando com pão.
Vaca Turina |
Uma ponta de saudade desceu sobre o seu peito.
Bem guardado, nas suas memórias, estava aquele dia distante, teria ele uns nove anos, em que a Cigana, a égua de seu pai, parira o seu primeiro poldro.
O Velho, deslumbrado, assistiu ao nascimento e o seu coração de menino inchou de orgulho e felicidade quando o pai, olhando-o com seriedade, lhe disse: Este poldro é teu. A partir de hoje és responsável por ele. Mas, toma atenção, será a forma como o tratares que ditará aquilo que poderás esperar dele.
Encantado, foi o nome que o Velho escolheu, para dar à maior prenda que alguma vez recebera na vida.
Até ao final, Encantado foi o seu grande companheiro de trabalho, de passeios, das idas à vila...
Ainda lhe parecia poder ouvir, pairando no ar, o seu relinchar potente, o som ligeiro dos seus cascos. Mesmo agora, sentira um toque suave no rosto, das suas crinas esvoaçantes.
De olhos fechados, recostado no velho chaparro, o Velho recordava as loiras searas, que as suas mãos, outrora fortes e destemidas, haviam semeado, ceifado, enfardado e debulhado.
Bem guardado, nas suas memórias, estava aquele dia distante, teria ele uns nove anos, em que a Cigana, a égua de seu pai, parira o seu primeiro poldro.
O Velho, deslumbrado, assistiu ao nascimento e o seu coração de menino inchou de orgulho e felicidade quando o pai, olhando-o com seriedade, lhe disse: Este poldro é teu. A partir de hoje és responsável por ele. Mas, toma atenção, será a forma como o tratares que ditará aquilo que poderás esperar dele.
Encantado, foi o nome que o Velho escolheu, para dar à maior prenda que alguma vez recebera na vida.
Até ao final, Encantado foi o seu grande companheiro de trabalho, de passeios, das idas à vila...
Ainda lhe parecia poder ouvir, pairando no ar, o seu relinchar potente, o som ligeiro dos seus cascos. Mesmo agora, sentira um toque suave no rosto, das suas crinas esvoaçantes.
De olhos fechados, recostado no velho chaparro, o Velho recordava as loiras searas, que as suas mãos, outrora fortes e destemidas, haviam semeado, ceifado, enfardado e debulhado.
Para
a sua mulher ficavam os trabalhos da casa, os filhos, a horta, as
galinhas e os coelhos. Juntos tratavam o pequeno pomar. Juntos tinham
vivido uma vida, criado uma família, trabalhando sem descanso, sem
férias, sem viagens ao estrangeiro, mas essas eram coisas que para eles
nem tinham sentido. O seu mundo era aquele. Animais, sementeiras e
colheitas não lhes davam férias, nem feriados.
Recordou a casa velha, de seus pais, aquela onde tinha nascido...
Monte alentejano - Carlos H. Macedo |
Recordou a casa de seu tio, da qual, agora, só restavam ruínas. Nenhum dos filhos se interessara pela lavoura. Deixaram-na cair, triste e abandonada.
Quando era menino, o Velho, corria, um bom quarto de hora, todas as manhãs, para levar o leite da vaca turina para os primos.
Alentejo com Papoilas- Salvação Barreto |
O
tempo passara, bem mais depressa do que o Velho dera conta. Da velha
casa dos pais, que ele mantivera e cuidara com carinho, só restavam as
memórias. O seu filho mais velho, que fora para Lisboa e se dedicara à
construção civil, tinha-a restaurado, melhor dizendo, deitara-a quase
completamente abaixo, deixando ficar apenas algumas paredes, e fizera
dela uma casa grande, com as comodidades e modernices da cidade.
Dissera-lhe,
um dia, "Meu Pai, gosto muito de vir para cá com a minha família, mas
temos que ter condições. Não posso obrigar a mulher e os filhos, a virem
para aqui, sem casas de banho, sem electricidade, sem comodidade. Eles
até gostam de vir. Têm a praia perto, gostam da vida do campo e gostam
de estar com os avós, mas não vêm se não tiverem condições, se não
poderem convidar os amigos.
O
Velho aceitou as alterações, as obras, a grande confusão. Afinal, tinha
criado bons filhos, amigos de seus pais e, portanto, tinha que fazer
concessões. E, no final, também ele se habituou às modernices e à
comodidade.
Na Terra dos Quatro Cantos - Paulo Narciso |
O Velho sorriu, com um sorriso meio desdentado. Tinha tido uma boa vida. Houve momentos difíceis, alguns, mesmo, de desespero.
Mas,
a vida dera-lhe família, uma boa mulher, filhos que o adoravam, amigos e
terra castanha, campos verdes, animais no pasto e dera-lhe aquele
sobreiro, onde podia descansar.
A mulher do Velho chamou ao longe: Zé, anda para casa, já se faz tarde, o jantar está pronto.
Não
obteve resposta, nem viu qualquer movimento. Apressada foi ter com o
marido. Observou-o sorrindo. Chamou-o de mansinho, mas nem um músculo se
moveu na cara do Velho.
A
Mulher agachou-se, tocou-lhe no rosto,.... Uma lágrima escorreu-lhe
pelas suas faces de velha, crestadas pelo sol. Sentou-se ao lado do
marido e encostou-se a ele.
Fechou os olhos e, sentindo um aperto no
coração, recordou, também ela sorrindo, o primeiro beijo que o seu Zé
lhe roubara. Tinha sido ali mesmo, sob o olhar protetor do Chaparro
abençoado.
Fora também debaixo daquele chaparro que deitara
os seus filhos, à sombra, enquanto andava, atarefada, entre galinhas,
couves, coelhos, ou amassando o pão, que o seu belo forno havia de
cozer.
E, fora ali, também, ninguém jamais soubera disso, que ela e o seu Zé, pela primeira vez se tinham amado.
No
dia seguinte, quando os filhos chegaram, para passarem as férias,
encontraram os seus pais sorrindo, encostados um ao outro, sob a
proteção do Chaparro Abençoado.....
Maravilhoso texto!
ResponderEliminarParabes e continue !
👏👏👏👏👏👏
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